O televoto e a cultura democrática da sociedade civil
Conforme é do conhecimento público, prevê-se que, em breve, uma revisão das leis eleitorais venha a ser objeto de debate na Assembleia da República. Entre outros tópicos, considera-se a necessidade de incluir de forma adequada, no universo eleitoral dos efetivos votantes, os portugueses na diáspora, designadamente os que, tendo obtido o cartão de cidadão, passaram a ser eleitores por via do recenseamento automático – medida que provocou um alargamento súbito de 300.000 eleitores para 1.500.000 eleitores. Uma das vias que tem sido apontada, quer pela SEDES, quer pelo Conselho das Comunidades Portuguesas, para alcançar esse objetivo, é a implementação de um sistema de voto eletrónico remoto. Também os representantes de alguns grupos parlamentares já manifestaram a intenção de aprovar uma lei eleitoral que contemple a utilização do televoto [1].
Sem prejuízo da boa intenção que subjaz a este posicionamento, a preocupação com a cibersegurança é um aspeto central que nos deve obrigar a uma importante reserva de prudência, conforme a atualidade tem sido prodigamente demonstrativa. Neste sentido, e sem prejuízo da vertente externa – convirá aguardar pela experiência de outros países com mais tradição tecnológica neste campo, haverá vantagem em que a familiarização com o voto eletrónico remoto adquira, numa primeira fase, suficiente dimensão na sociedade civil, e que só depois de haver uma adequada maturação do processo se possa equacionar implementá-lo ao nível das eleições para as instituições políticas, sobretudo no que respeita aos órgãos de soberania.
Ademais, o atual sistema de votação, por boletim, em papel, mantém como importante virtualidade democrática uma relativa independência de requisitos tecnocráticos, ao acolher como seus escrutinadores quaisquer cidadãos com um mínimo de escolaridade, e baseia-se em uma longa experiência há muito consolidada. De facto, o sistema de votação do atual regime constitucional tem mantido intacta, desde o início, a confiança sólida dos cidadãos: nomeadamente, salvo situações pontuais, sem relevância no cômputo nacional, não regista um histórico de alegações de fraude eleitoral. Podem, ainda assim, apontar-se-lhe alguns problemas, entre os quais, conforme ficou bem patente nas últimas eleições legislativas, se incluem as condições de acesso ao voto por parte de nacionais residentes no estrangeiro. Naturalmente, estas são legítimas preocupações para quem se mobiliza pela causa da qualidade da democracia e do combate à abstenção. Sim, haverá que proceder a uma urgente modernização do voto postal, tornando-o muito mais acessível e eficaz.
Da mesma maneira, há que promover um melhor esclarecimento dos cidadãos eleitores, e dos seus representantes, sobre as alternativas que a via tecnológica poderá oferecer no campo eleitoral. Para o efeito, importa, antes de mais, conhecer o estádio atual da implementação do voto eletrónico nas instituições da nossa sociedade civil, nomeadamente as ordens profissionais e os sindicatos, mas também as associações, universidades, clubes desportivos e, inclusive, os partidos políticos. Será igualmente vantajoso fazer-se preceder o inevitável debate público, sobre o tema, de estudos de opinião em que se ausculte os portugueses acerca da sua motivação para o voto eletrónico remoto, nas duas principais vertentes a considerar: a funcionalidade e a segurança do voto.
Efetivamente, ainda que a avaliação das potenciais vulnerabilidades de um qualquer sistema de televoto pertença, como competência especializada, a peritos habilitados na área tecnológica, nem por isso a assunção dos eventuais riscos que o mesmo possa acarretar - para o caráter pessoal, seguro e secreto do voto - deixará de resultar de uma decisão política e, portanto, sujeita ao exame responsabilizador da opinião pública. De resto, a pretendida adaptação será tanto mais natural quanto melhor se for implementando uma cultura endógena de utilização do televoto, baseada na experiência vivida, assim se proporcionando uma transição gradual, de baixo para cima, em direção ao estabelecimento do novo método.
[1] As informações contidas neste parágrafo baseiam-se nas intervenções produzidas em «Comunidades Portuguesas: Reforma das Leis Eleitorais», Sessão de Reflexão que teve lugar na Assembleia da República, Auditório António Almeida Santos, no passado dia 3 de maio de 2022. Mais recentemente, algumas notícias divulgadas pela imprensa escrita (10 de fevereiro de 2023) vieram corroborar a persistência das ditas intenções.
Paulo da Costa Ferreira