Um pouco da história da fundação do Partido Socialista e porque não vou às comemorações dos seus 50 anos.
Meu Caro Secretário-Geral do Partido Socialista,
O Partido Socialista é o filho ideológico da Ação Socialista na defesa intransigente da liberdade, dos direitos fundamentais dos cidadãos e do Estado de Direito democrático.
Quando celebramos 50 anos da fundação do nosso partido constato que esta matriz fundadora do PS se tem vindo a perder.
Nesta carta simples de testemunho histórico, resumo alguns dos episódios, que presenciei, sobre a fundação do PS, onde estes valores, não apenas estiveram sempre presentes, mas foram o referencial da ação daqueles que os protagonizaram.
Em 1963, o Dr. Fernando Vale convidou-me para ir a uma reunião clandestina em Lisboa, onde estariam alguns dos seus amigos da oposição à ditadura para criarem a Ação Democrática Social.
A reunião era presidida pelo Dr. Cunha Leal e entre os amigos do Fernando Vale estavam, entre outros, o Dr. Raul Madeira, médico em Soure, o Dr. Herminio Paciência médico de Alpiarça, o jornalista Carlos Ferrão que dirigia a revista Vida Mundial.
A função de que fui incumbido pelo Dr. Fernando Vale era boicotar a reunião.
Falhei nessa missão, mas Mário Soares, que conheci nesse dia, com uma brilhante intervenção, executou-a na perfeição e acabou com a reunião sem que se criasse a Ação Democrática Social.
Foi um passo importante para o posterior nascimento, em 1964, numa reunião clandestina, da Ação Socialista, dinamizada no exterior pelo Tito de Morais e Ramos de Costa.
Após a chegada da deportação de S. Tomé de Mário Soares, a Ação Socialista, em 1969, reforçou a sua ação com vista às eleições desse ano.
A Ação Socialista pretendeu apresentar-se às eleições na máxima força com a oposição unida, mas sem aceitar a hegemonia do PCP.
O Dr. Vereda, advogado em Leiria, promoveu uma reunião em S. Pedro de Moel para unificar a oposição.
O Sottomayor Cardia, à época ainda militante do PCP, num discurso arrasador acabou com essa perspetiva de unidade.
Apesar desta decisão, a Ação Socialista trabalhou para, nos distritos onde fosse possível haver unidade da oposição, apresentar listas em conjunto com o Partido Comunista.
Foi o caso do distrito de Coimbra, onde o acordo de unidade foi possível e a lista candidata se apresentou com 2 militantes do PCP, 2 militantes da Ação Socialista e 2 independentes, um indicado pelo PCP, outro pela Ação Socialista. O cabeça de lista foi o prof. Henrique de Barros, independente indicado pela Ação Socialista.
Em 1971, o Salgado Zenha, António Macedo e eu fomos a Paris, onde Mário Soares estava exilado, para uma reunião com o Dr. Álvaro Cunhal, para o tentar convencer de que a queda da ditadura só era possível através de um golpe militar e nunca pelo levantamento popular que sempre protagonizou.
A reunião não se realizou, porque nesse dia o António Macedo foi internado de urgência, para uma cirurgia que o levou à extração da bexiga.
Conheci nesse período o Tito de Morais, que veio de Itália, e o Ramos da Costa que já defendiam a transformação da Ação Socialista em partido político.
Em março de 1973, Mário Soares, Tito de Morais e Ramos da Costa enviaram um apelo para a concretização desse objetivo.
Os militantes de Lisboa numa reunião, sem convocação ou conhecimento dos militantes da Ação Socialista do resto do País, reprovaram a criação do partido.
A rede clandestina montada pelo Ramos da Costa com os ferroviários do Sud Expresso, via Alfarelos, permitia aos militantes da zona Centro uma relação direta com Paris, onde residia Mário Soares, para troca de informações e papéis, incluindo a receção do Portugal Socialista.
Através dessa rede, recebi o apelo dramático para reunir os militantes da Ação Socialista de todo o País e reverter a decisão tomada em Lisboa para, entre outros objetivos, permitir o apoio da Internacional Socialista ao combate à ditadura em Portugal.
Foi o que fiz, organizando na minha casa, em Oliveira do Hospital, uma reunião clandestina com cerca de meia centena de militantes da Ação Socialista de todo o país que votaram favoravelmente a fundação do Partido Socialista e elegeram o Jaime Gama como Secretário-Geral interino até à reunião da legalização do PS, a realizar na Alemanha.
Posteriormente, houve uma reunião em casa do António Arnaut para decidir quem ia à Alemanha.
No preciso momento em que o jornalista Maia Cadete me estava a entregar os bilhetes para a deslocação à Alemanha, atropelaram o meu filho mais novo, ficando entre a vida e a morte durante cerca de 15 dias.
O Maia Cadete já não foi entregar os bilhetes ao António Macedo e Cal Brandão, (Porto), ao Álvaro Monteiro (Viseu) e ao Costa e Melo (Aveiro) e ficou a acompanhar-me no meu desespero na clínica de Santa Filomena, em Coimbra.
Todos acabaram por não se deslocar à Alemanha em solidariedade comigo.
Mais tarde, em setembro de 1973, comunico via Sud Expresso que iria receber um documento importantíssimo e que iria pessoalmente entregá-lo a Paris. A resposta que recebi foi a de que vinham a Vigo. O António Macedo, o António Arnaut, eu e as respetivas mulheres fomos a Vigo entregar ao Mário Soares, Tito de Morais e Ramos da Costa a ata da 1ª reunião do movimento de capitães, em Évora.
A primeira sede do Partido Socialista a abrir em Portugal, foi em Coimbra, onde tínhamos alugado uma vivenda para instalar uma livraria, junto à escadaria da Universidade, onde ainda hoje é a sede distrital do Partido.
No PS, o valor da Solidariedade esteve sempre presente, mesmo nos momentos de forte divergência interna foi sempre um princípio inabalável de todos. Além dos episódios anteriores, posso testemunhar um outro, tive um cancro bastante agressivo, fui operado no hospital S. Louis, tive de fazer tratamentos e muitas vezes na hora em que os ia fazer recebia um telefonema do António Guterres, que como bem sabes liderou uma tendência política no PS no período em que tive responsabilidades na organização do partido, a saber se estava sozinho ou se precisava da sua companhia.
Nunca soube quem o informava.
Agradeço-te o convite para o jantar Comemorativo dos 50 anos da legalização do PS, que está distante da liderança de Mário Soares, onde a divergência era salutar e muito enriquecedora politicamente. É com profunda deceção que, com a benevolência do Partido, assisto à acelerada degradação das instituições democráticas, que tanto custaram a conquistar.
Infelizmente já não tenho a energia do passado, se a tivesse estaria presente para pessoalmente te afirmar a necessidade de reaproximar o Partido dos valores que presidiram à sua fundação.
Espero que este pequeno testemunho sobre a fundação e legalização do Partido Socialista te ajude, se quiseres, a dar o conhecimento histórico no jantar da comemoração dos 50 anos do nosso PS.
Saudações socialistas,
António Campos